Como abordar o chefe segundo Georges Perec
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Luís Antônio Giron
Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
A disseminação dos manuais de autoajuda não acontece apenas no setor chamado de “não-ficção” em listas de livros mais vendidos (por “não-ficção”, entendem-se também os romances psicografados, e neste aspecto tenho minhas dúvidas sobre o estatuto de realidade dessas obras). Nos últimos tempos, tenho notado que a autoajuda se infiltrou também na ficção. Guias de como se dar bem na vida conquistando pessoas e fazendo amigos são agora vendidos sob a forma de histórias de vampiro, contos de mistério e horror, sagas familiares, aventuras e epopeias. É uma distorção literária que só ajuda mesmo o autor a vender mais livros, e pode derreter os neurônios do leitor. Eu sou antiquado, pois não aceitaria de jeito nenhum conselhos de um lobisomem sobre carreira e ética na governança corporativa. Não me vejo buscando o oráculo de um golden retriever. Nem pediria orientações sobre como virar gerente a um alienígena invasor de corpos ou a um vampiro, mesmo que seja o simpático e eterno adolescente (portanto, idealista) Edward da “saga” Crepúsculo, de Stephenie Meyer. As pessoas andam tão desorientadas que qualquer fonte serve para reforçar convicções já adquiridas. E assim os escritores vendem autoajuda sob as mais variadas forma, que os leitores consomem alegremente como autoembuste.
Considerada a minha reduzida taxa de credulidade em relação ao universo em expansão dos conselhos, confesso que me surpreendi com o seguinte título de um livrinho lançado pela Companhia das Letras, editora que sempre se recusou a adotar o gênero: A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento (84 páginas, tradução de Bernardo Carvalho). Cheguei a pensar: será que o refinado editor e escritor Luis Schwarcz se rendeu à faixa mais óbvia do mercado de livros? Ao prestar atenção no volume, no entanto, descobri que o autor da obra era Georges Perec. Não se trata de um guru motivacional. Perec não é a versão francesa de Roberto Shinyashiki. Ao contrário, foi um escritor de ultravanguarda que fez sucesso na década de 60 e morreu em 1982 aos 46 anos. Um título de sua autoria com essa cara de autoajuda é no mínimo intrigante.
Perec ficou famoso por seus contorcionismos combinatórios. Fascinados pelas conquistas da estatística e da matemática, os ficcionistas e os não-ficcionistas daquele tempo abraçaram o extremo racionalismo para dar conta de seus anseios, dúvidas e inquietações. Foi a idade de ouro do estruturalismo, da semiótica, da música serial e da op art. Tudo poderia ser traduzido por um algoritmo. Hoje essa atitude vanguardista soa ingênua, como se esses intelectuais agissem como homens das cavernas de um novo tempo, o nosso tempo de internet e de promiscuidade científica e literária. Enfim, Perec emociona pelo que ele tem de crente nas variações combinatórias. Ele ficou famoso com o romance La disparition (1969), em que praticava a “lipogramática”, ou seja, eliminava um termo da linguagem para elaborar sua história – no caso, ele eliminou da narrativa todas as palavras com a vogal “e” – a mais frequente na língua francesa (e na portuguesa também). O resultado é excêntrico, porque a ausência de uma letra tão importante fez com que o autor usasse de circunlóquios para termos banais como a palavra “vermelho” (rouge) e outras tantas. Claro que era uma estratégia criativa, e Perec é um grande escritor muito acima da média. Ele vaza sensibilidade dos números e do cálculo de probabilidade.
Agora é preciso antes de tudo fazer uma advertência: a novela A arte e maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento é um verdadeiro livro de autoajuda, no sentido de que vacina o leitor para qualquer atitude idiota ou impensada. Escrito em 1968, no clima de agitação da época (revolta estudantil, revolução sexual e epistemológica), o livro vira sem querer o precursor das obras de autoajuda – a um tempo seu maior agente provocador e exterminador. A narrativa conta a história do leitor (o personagem principal não tem nome e é tratado como “você”, bem ao estilo dos teóricos de neurolinguística atuais). Você é funcionário de uma empresa e quer pedir aumento. E então vai tomando decisões de acordo com os eventos que se apresentam. Você cai em um labirinto de indecisões e desvios. E não vou contar o final para não ser estraga-prazeres (hoje andam chamando “estraga-prazeres” de “spoilers”...).
A história teve como base um organograma criado pelo amigo de Perec, Jacques Perriault, do centro de cálculo da Maison dês Sciences de l”Homme. Em 1968, Perec era escritor-residente no Moulin d’Anté (importante instituição universitária francesa), e participava do Oulipo (Oficina de Literatura Potencial), um núcleo de escritores de vanguarda. Perec passou a se interessar por organogramas como princípios geradores de invenção literária. Perriault propôs o organograma “A arte e a maneira de abordar seu chefe imediato”, com uma série de procedimentos, começando pela decisão de pedir aumento até a realização da audiência com o chefe imediato (confira o organograma). É um esquema sarcástico, que envolve bifurcações e fatos inesperados. Por exemplo: e se o chefe, o senhor x, se engasgar com uma espinha de peixe, o que você deve fazer? E se a secretária, dona Yolanda, estiver de mau-humor? E se ele tiver uma filha com sarampo, o que dizer? E duas? E se ele tiver três filhas com sarampo e for contaminado? É lícito interná-lo numa quarentena forçada?
De posse do organograma, Georges Perec deitou e rolou. Ele não ficou apenas no nível da resolução de cada problema e se deixou levar pelas bifurcações. Num texto sem pontuação que lembra o fluxo de consciência do romance Ulisses, de James Joyce (1922), ele converte aquilo que ele denominou “literatura matricial” em um circuito fechado de desespero.
Você erra pelos departamentos da empresa, enquanto espera o chefe na sexta-feira e já esgotou o papo com dona Yolanda. Um trecho para ilustrar. Você consegue chegar ao chefe imediato e expõe seus projetos de sucesso e idéias novas:
(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras.)
Considerada a minha reduzida taxa de credulidade em relação ao universo em expansão dos conselhos, confesso que me surpreendi com o seguinte título de um livrinho lançado pela Companhia das Letras, editora que sempre se recusou a adotar o gênero: A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento (84 páginas, tradução de Bernardo Carvalho). Cheguei a pensar: será que o refinado editor e escritor Luis Schwarcz se rendeu à faixa mais óbvia do mercado de livros? Ao prestar atenção no volume, no entanto, descobri que o autor da obra era Georges Perec. Não se trata de um guru motivacional. Perec não é a versão francesa de Roberto Shinyashiki. Ao contrário, foi um escritor de ultravanguarda que fez sucesso na década de 60 e morreu em 1982 aos 46 anos. Um título de sua autoria com essa cara de autoajuda é no mínimo intrigante.
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Perec ficou famoso por seus contorcionismos combinatórios. Fascinados pelas conquistas da estatística e da matemática, os ficcionistas e os não-ficcionistas daquele tempo abraçaram o extremo racionalismo para dar conta de seus anseios, dúvidas e inquietações. Foi a idade de ouro do estruturalismo, da semiótica, da música serial e da op art. Tudo poderia ser traduzido por um algoritmo. Hoje essa atitude vanguardista soa ingênua, como se esses intelectuais agissem como homens das cavernas de um novo tempo, o nosso tempo de internet e de promiscuidade científica e literária. Enfim, Perec emociona pelo que ele tem de crente nas variações combinatórias. Ele ficou famoso com o romance La disparition (1969), em que praticava a “lipogramática”, ou seja, eliminava um termo da linguagem para elaborar sua história – no caso, ele eliminou da narrativa todas as palavras com a vogal “e” – a mais frequente na língua francesa (e na portuguesa também). O resultado é excêntrico, porque a ausência de uma letra tão importante fez com que o autor usasse de circunlóquios para termos banais como a palavra “vermelho” (rouge) e outras tantas. Claro que era uma estratégia criativa, e Perec é um grande escritor muito acima da média. Ele vaza sensibilidade dos números e do cálculo de probabilidade.
A história teve como base um organograma criado pelo amigo de Perec, Jacques Perriault, do centro de cálculo da Maison dês Sciences de l”Homme. Em 1968, Perec era escritor-residente no Moulin d’Anté (importante instituição universitária francesa), e participava do Oulipo (Oficina de Literatura Potencial), um núcleo de escritores de vanguarda. Perec passou a se interessar por organogramas como princípios geradores de invenção literária. Perriault propôs o organograma “A arte e a maneira de abordar seu chefe imediato”, com uma série de procedimentos, começando pela decisão de pedir aumento até a realização da audiência com o chefe imediato (confira o organograma). É um esquema sarcástico, que envolve bifurcações e fatos inesperados. Por exemplo: e se o chefe, o senhor x, se engasgar com uma espinha de peixe, o que você deve fazer? E se a secretária, dona Yolanda, estiver de mau-humor? E se ele tiver uma filha com sarampo, o que dizer? E duas? E se ele tiver três filhas com sarampo e for contaminado? É lícito interná-lo numa quarentena forçada?
De posse do organograma, Georges Perec deitou e rolou. Ele não ficou apenas no nível da resolução de cada problema e se deixou levar pelas bifurcações. Num texto sem pontuação que lembra o fluxo de consciência do romance Ulisses, de James Joyce (1922), ele converte aquilo que ele denominou “literatura matricial” em um circuito fechado de desespero.
Você erra pelos departamentos da empresa, enquanto espera o chefe na sexta-feira e já esgotou o papo com dona Yolanda. Um trecho para ilustrar. Você consegue chegar ao chefe imediato e expõe seus projetos de sucesso e idéias novas:
“(...) mas bem o seu chefe imediato está pouco se lixando para elas mas acha a sua ideia estúdia ou bem não está pouco se lixando para elas não acha a sua ideia estúpida mas não tem tempo para prestar atenção na sua ideia ou bem não está pouco se lixando não acha a sua ideia demasiado estúpida acha tempo pra cuidar dela mas não entende nada da sua ideia ou bem não está se lixando acha a ideia genial acha tempo para responder e a entende perfeitamente mas esqueceu nesse meio-tempo que você vinha pedir um aumento logo é melhor não ter ideia nenhuma na falta de idéias sua participação num importante projeto brilhantemente realizado pela sua empresa poderia ajudar consideravelmente para que ele levasse em conta a sua aspiração por um amelhora salarial a pergunta lhe será feita abertamente responda com igual franquesza se você participou recentemente de um grande projeto bem-sucedido diga sim se você não participou de um grande projeto bem-sucedido diga não se você participou recentemente de um grande projeto fracassado não toque no assunto e se você participou faz tempo muit tempo de um projeto minúsculo que sem ter propriamente fracassado também não poderia ser considerdo um projeeto bem-sucedido tampouco toque no assunto pode ocorrer evidentemente que a sua firma tenha sido bem-sucedida em grandes negócios mas que estes sejam prcisamente aquels dos quais você não participou ou pior ainda que ela tenha fracassado em todos nos quais você se envolveu de perto ou de longe não tire nenhuma conclusão apressada aliás pra simplificar pois sempre é bom simplificar não vamos tratar desses casos mas suponhamos que apesar de tudo é o mais verossímil que voc~e não tenha participado recentemente de um grande projeto bem-sucedido o que se explica pelo simples fato de que a sua firma não foi bem-sucedida em nenhum grande projeto (...)"Certo, não é nenhuma orientação útil como as que o Max Gehringer dá. Mas não deixa de ser hilariante. No esquema seguido tão peculiarmente por Perec, todos os caminhos conduzem ou ao adiamento do pedido de aumento, ou então ao lixo, caso todos os procedimentos forem absolutamente corretos. Portanto, meu amigo, você só pode contar com você mesmo para pedir aumento. A alta literatura de vanguarda só vai desorientá-lo. Porque ela é antiautoajuda. Ela só dá um conselho e uma lição de vida neste mundo caótico: “vire-se!”
(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras.)
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