Guilherme Balza
Do UOL, em São Paulo
A cena repete-se várias de vezes ao longo da noite: dois investigadores à paisana, utilizando um carro “frio” (sem identificação da polícia), fingem procurar uma vaga nos arredores do estádio do Morumbi, zona oeste da capital paulista. Ao perceberem a aproximação do flanelinha, os policiais perguntam se há vaga livre. Mal o guardador de carros responde, eles anunciam sua prisão, por exercício ilegal da profissão.
Utilizando essa tática, policiais civis do DPPC (Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania) já prenderam 287 flanelinhas em 15 partidas de futebol realizadas desde 6 de maio deste ano. Do total, 17 foram detidos só na última quinta-feira (14), nos instantes que antecederam a vitória de 1 a 0 do São Paulo sobre o Coritiba, válida pela semifinal da Copa do Brasil.
POLÍCIA CIVIL APERTA O CERCO CONTRA FLANELINHAS EM SÃO PAULO
Na última quinta, atuaram seis equipes com dois ou três investigadores, além de delegados e escrivães --em clássicos ou jogos da Taça Libertadores da América, até dez equipes, num total de 40 policiais, chegam a ser escaladas. No Morumbi, cada grupo tinha como meta prender ao menos três flanelinhas. Segundo os policiais, a tarefa dessa vez foi mais difícil de cumprir do que em ações anteriores porque havia menos guardadores do que o normal e os que se aventuraram já estavam “escaldados”.
Segundo o delegado Fernando Schmidt, coordenador da operação, há até pouco tempo os policiais do DPPC atuavam, sobretudo, no combate aos cambistas. As operações contra flanelinhas começaram a ocorrer de forma mais ostensiva após os policiais receberem queixas de motoristas. “Começamos a cuidar dos cambistas, mas chamou nossa atenção a reclamação das pessoas com relação aos flanelinhas. E começamos a prendê-los”, diz.
Conforme as ações foram sendo realizadas, o número de flanelinhas no entorno dos estádios diminuiu. O preço cobrado por eles, também: “Nós pegamos grandes jogos, da Libertadores, quando chegava-se a pedir R$ 50, R$ 100. Hoje, os flanelinhas pedem R$ 5, R$ 10, porque estão vendo que não há mais facilidade na atuação deles”, afirma Schmidt.
A intenção do DPPC é ampliar, em breve, as ações em outros eventos, como shows e festas. O próximo alvo serão os valets que atuam em bares, restaurantes e casas noturnas cometendo irregularidades, como estacionar o carro na rua. A partir de 1º de julho, os valets serão obrigados a entregar um ticket padronizado aos clientes.
Policiais civis prendem 17 flanelinhas que atuavam nos arredores do estádio do Morumbi, na zona sul da capital paulista, antes da partida entre São Paulo e Coritiba pela Copa do Brasil, na quinta-feira (14); desde 6 de maio deste ano 287 flanelinhas foram detidos
Leandro Moraes/UOL
Via de regra, os flanelinhas não oferecem resistência no momento do flagrante. A maioria sequer é algemada. Do local da abordagem, são levados a uma delegacia móvel do DPPC situada no portão principal do Morumbi. Lá, aguardam dentro de um camburão a hora de serem chamados para informar os dados aos policiais.
Os detidos são conduzidos ao DPPC, onde assinam um Termo Circunstanciado de Ocorrência --registro empregado em infrações de menor poder ofensivo-- e comprometem-se a se apresentar em juízo. O termo é remetido a um Juizado de Pequenas Causas e constará da ficha de cada detido.
Flanelinha, profissão legalizada
Os flanelinhas são enquadrados por exercício ilegal da profissão (Artigo 47 da Lei das Contravenções Penais) e, se condenados, podem pegar de 15 dias a três meses de prisão ou pagarem multa. De todos os 287 detidos, nenhum foi enquadrado em crime de extorsão, que prevê prisão imediata, já que não houve denúncia de ameaças ou chantagem contra as vítimas.
“Não teve um caso de uma pessoa ter sido ameaçada. Temos observado uma mudança de comportamento: os flanelinhas não estão mais agindo daquela forma grosseira, ameaçadora. Isso é muito bom. Mostra que eles também querem se adequar”, diz o delegado.
A profissão de flanelinha não é ilegal: existe legalmente desde 1975, quando o presidente Ernesto Geisel sancionou a lei autorizando o exercício da “profissão de guardador e lavador autônomo de veículos”. Segundo Schmidt, a profissão foi criada porque já naquela época motoristas irritavam-se com guardadores e lavadores de carro que atuavam, sobretudo, nas orlas das praias.
Para trabalhar como flanelinha é necessário registrar-se em delegacias do Ministério do Trabalho e Emprego, provando ter bons antecedentes e estar quite com as obrigações eleitorais e militares. No exercício da profissão, o guardador não pode obrigar o motorista a pagar ou fixar qualquer quantia. Cabe ao profissional apenas pedir alguma valor em troca do serviços prestado.
De acordo com o delegado, há, no Estado de São Paulo, apenas 164 flanelinhas registrados, a maioria em cidades do interior, organizados em associações e sindicatos. O número, diz ele, é ínfimo considerando a quantidade de guardadores atuando hoje no Estado.
Perfil dos flanelinhas
Entre os 17 detidos na última quinta quase todos moram em bairros afastados, não têm emprego formal e possuem baixa escolaridade. “São pessoas comuns, geralmente da periferia da cidade, simples, com pouca instrução, que procuraram nessa atividade uma forma de sustentar a família”, afirma o delegado.
Seis dos detidos têm antecedentes criminais, três por roubo e três por porte de droga --dos 287 presos até hoje, quase a metade possui antecedentes, segundo Schmidt. É o caso de Ronaldo Felisberto, 34, que ficou preso por dois anos e meio por porte de droga. “A pena foi longa porque eu estava na porta de uma escola.”
Felisberto é casado, tem três filhos e mora em Guaianases, extremo leste da capital paulista e cursou até a sétima série. Soma, no total, 13 anos de trabalho como flanelinha, a maior parte deles na rua 25 de Março, onde tinha um “ponto” de Zona Azul. O guardador conta que era “dono” de oito vagas, mas, há cerca de dois anos, vendeu seu pedaço por R$ 8.000 a um lojista. “Minha mulher estava doente. Tinha que fazer uma cirurgia. Daí tive que vender.”
Depois de solto, chegou a ter empregos formais, como estoquista e conferente, pelos quais recebeu, no máximo, R$ 1.200. Desde que vendeu o ponto na 25 de março, passou a trabalhar como flanelinha em jogos, shows, micaretas e arredores de casas noturnas. Felisberto diz ganhar R$ 4.000 por mês, em média. “Tem mês que dá mais, tem mês que dá menos.”
O preço cobrado por motorista varia: “depende da cara do bacana. Mas normalmente peço R$ 5, R$ 10”. Ele admite que só fica até o final do evento se não acabar muito tarde e diz não brigar caso o cliente se recuse a pagar. “Essa coisa de riscar carro era antigamente. Não perco tempo com isso. Se ele não quer pagar, vou atrás de outro.”
Curiosamente, o flanelinha conta que a maior gorjeta que recebeu foi do ex-presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, que estava indo a uma festa organizada pelo jogador Ronaldo. “Ele prometeu me pagar R$ 50. Mas quando voltou, só tinha US$ 100 na carteira e me deu.”
Felisberto diz que o cerco da polícia o fez evitar jogos. Só foi na última quinta ao Morumbi porque precisava pagar uma conta pela qual não estava esperando. “Fui testar para ver como estava, se realmente tinha polícia. Vi que estava muito vazio e pensei ‘hoje está sujo’. Estava indo embora, mas vi um carro e pedi dinheiro. Flanelinha não aguenta ver um carro."
O vigia J.A.F., 34, detido no mesmo jogo que Felisberto, também tem antecedentes criminais: ficou preso por 11 meses acusado de um homicídio, mas, segundo ele, ganhou a liberdade após descobrirem que o autor do crime era outra pessoa.
Ele trabalha como vigia em uma rua próxima ao estádio, mas não tem registro profissional. Por esta razão, foi preso. “Sou terceirizado. Um outro vigia que tem contrato com os moradores passou uma rua para eu tomar conta, mas não me registrou”, afirma.
Casado, dois filhos e com a mulher grávida do terceiro, J.A.F. ganha R$ 800 como vigia e cerca de R$ 1.200 como flanelinha, por mês. Ele afirma cobrar entre R$ 20 e R$ 40 por carro e faz bicos em outros eventos, além dos jogos no Morumbi. “O artista vai onde o povo está.”
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