Edição 2067
2 de julho de 2008
Documentos revelam que conselheiros do TCE
do Rio de Janeiro vendiam decisões a prefeituras
do Rio de Janeiro vendiam decisões a prefeituras
Diego Escosteguy
Paulo Alvadia/Ag. O Dia |
Apesar dos rostos sisudos, da aparência circunspecta e do louvável empenho em zelar pela boa aplicação dos impostos dos contribuintes do Rio de Janeiro, cinco dos sete senhores sentados na bancada acima estão envolvidos numa tremenda enrascada. Documentos apreendidos pela Polícia Federal revelam que os conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) foram comprados por uma empresa de consultoria. Comprados mesmo, incluindo aí todas as etapas de um negócio qualquer: avaliação inicial, orçamento, negociação de preço, nota, contabilização no caixa – igualzinho faz uma empresa privada quando adquire uma mercadoria. O grupo mineiro SIM inovou no conceito de corrupção. Já se sabe que a empresa mantinha uma rede de influência em vários tribunais do país para subornar juízes e manipular decisões à base de pagamento de propina. O caso dos conselheiros fluminenses, por enquanto, é apenas o mais edificante. Para aprovar as contas de um cliente no TCE, a empresa não precisou contratar advogados, nem solicitar pareceres jurídicos de especialistas. Simplesmente pagou ao presidente da corte, a quatro conselheiros e a alguns assessores do próprio tribunal, que ficaram encarregados de redigir a defesa.
Não é a primeira vez que se ouve falar de casos assim, mas isso sempre ficou restrito ao diz-que-me-diz-que das pessoas ou, no máximo, a intrigas de quem foi derrotado em alguma demanda nos tribunais. Desta vez, não. Ao investigar casos de corrupção envolvendo prefeitos de Minas Gerais – um deles o do famoso Carlos Alberto Bejani, de Juiz de Fora, aquele filmado nadando em maços de dinheiro vivo –, a polícia descobriu que muitos administradores municipais recorriam à SIM para resolver problemas legais. Uma busca feita na sede da empresa, em Belo Horizonte, revela por quê. A SIM oferecia bem mais do que um simples serviço de assessoria ou consultoria. Ela garantia resultados favoráveis, mesmo quando tudo parecia perdido. Os documentos mostram que a SIM era uma espécie de motor financeiro a serviço de um grupo de prefeituras enroladas com a Justiça. Pelo contrato, cabia à empresa limpar o nome dos municípios junto ao Judiciário, para que os prefeitos pudessem receber verbas oficiais. Por isso, estar em dia com as prestações de contas nos tribunais era essencial. Para conseguir o atestado, a SIM recorria a métodos singulares. O município de Carapebus, no Rio, é um dos clientes do grupo. No fim de 2002, o prefeito estava com dificuldades para aprovar as contas, diante de um amontoado de irregularidades detectadas. De uma hora para outra, tudo foi resolvido. Na sede do grupo SIM, a polícia descobriu como – e sem precisar investigar muito. Estava tudo arquivado.
Fotos César Tropia |
A empresa SIM, de Belo Horizonte, oferecia decisões em tribunais: rede de suborno em Minas, Brasília e no Rio |
São duas as provas que, segundo a polícia, não deixam dúvida sobre o esquema no TCE fluminense. Como um negócio qualquer, havia uma minuciosa descrição da estratégia para aprovar as contas de Carapebus. Uma carta enviada à empresa por Álvaro Lopes, um político do Rio ligado ao PMDB, detalha uma reunião entre ele e um intermediário com o tribunal. Nela, foi acertada a solução. A SIM precisaria desembolsar 130.000 reais para pagar ao presidente, José Gomes Graciosa, a quatro conselheiros (chamados de "CONS’s" no documento) e a alguns assessores – e garantir a aprovação das contas. Cada conselheiro embolsaria 20.000 reais. Os 30.000 restantes seriam divididos entre os assessores da corte e um "intermediário". Lopes é didático: "Eles combinam o preço conforme o quantitativo dos CONS’s para aprovação total e o valor total envolvido no processo". No memorando da corrupção, o signatário também menciona o pagamento de um outro caso similar, de 150.000 reais, "para aprovar as contas do nosso amigo". Ele ainda ressalta que os conselheiros reclamaram do valor oferecido, em razão do "procedimento a ser tomado para aprovação". Para fechar o negócio, Lopes abriu aos conselheiros a possibilidade de pagar adiantado metade da propina. "Para adoçar a boca do grupo", diz o peemedebista, lembrando ao chefe que ele não está levando nenhum trocado pelo serviço.
Fotos Maria Tereza Correia/Estado de Minas/Folha Imagem e Andre Dusek/AE |
A prisão do prefeito Alberto Bejani (à esq.) levou a PF a investigar supostas incursões da quadrilha no Tribunal Superior Eleitoral |
Anexada à carta encontrada no escritório havia uma nota de subempenho, na qual se deixa claro que o negócio foi fechado, conforme o relatório de Álvaro Lopes. Ou seja: a propina não só está contabilizada como descrita em meias palavras. A especificação da despesa consta como "pagamento em espécie para TCE-RJ". Tudo quitado no decorrer dos anos de 2003 e 2004, em quatro parcelas "(21+21+23+65)" – exatamente o valor descrito na carta. Numa impressionante revolução administrativa, a prefeitura de Carapebus conseguiu aprovar todas as suas contas nos últimos cinco anos. Em dois desses anos, o relator foi o conselheiro José Nader. Em depoimento à polícia, um dos integrantes da quadrilha, o advogado Marcelo Abdalla, disse que um dos quatro conselheiros ainda não identificados é José Nader. Ele recebeu propina da SIM, segundo o advogado, por intermédio de seu filho, o deputado estadual José Nader. Procurado, o conselheiro não se pronunciou. O autor do relatório, Álvaro Lopes, admitiu ser amigo dos donos da SIM, mas negou ser o autor da carta. "Visito o TCE, mas só para tratar de questões administrativas", diz ele. O presidente do tribunal, José Maurício de Lima Nolasco, diz que desconhece os personagens citados pela polícia e que ele, em hipótese alguma, teve qualquer contato, recebeu ou fez ligação telefônica para qualquer dos envolvidos.
Fotos Ichiro Guerra/Folha Imagem e Charles Silva Duarte/O Tempo |
O ex-ministro do STF Carlos Velloso (à esq.) e o desembargador Francisco Betti: eles serão ouvidos |
Os mercadores de sentença tinham tentáculos poderosos em outros locais. Investigações da polícia já revelaram que juízes federais de Minas Gerais estão na relação de pagamentos da SIM. O esquema, como não poderia deixar de ser, também alcançava Brasília. Um dos clientes da SIM é a prefeitura da cidade mineira de Timóteo. Geraldo Nascimento, o prefeito, teve o mandato cassado por abuso de poder econômico na última campanha. A empresa cobrou 6 milhões de reais para tentar salvar seu mandato, que será analisado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Em novembro do ano passado, a PF interceptou conversas entre os integrantes do esquema, nas quais eles tramavam para conseguir derrubar no TSE a decisão da Justiça de Minas. O principal articulador do lobby era o advogado Wander Tanure, conhecido por manter amigos influentes em postos-chave do Judiciário federal, entre eles o ex-ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal. Tanure aparece nas gravações alardeando influência no TSE. Segundo o advogado Marcelo Abdalla, que se transformou na principal testemunha do caso, o empresário Sinval Andrade, dono da SIM, pagou 60.000 reais ao desembargador Francisco de Assis Betti, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, que teria se comprometido a reverter a condenação do prefeito Nascimento. O fato é que, com a influência ou não do grupo, o prefeito conseguiu uma liminar e voltou ao cargo. Velloso e Betti serão intimados a depor. "Nunca recebi pedido algum desse pessoal, nem eles ousariam fazê-lo", disse o ex-ministro Velloso, um jurista respeitado.
A nota acima foi encontrada na contabilidade interna da SIM. Ela mostra que a propina, discriminada como "despesa", foi paga ao Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, no ano de 2004, em parcelas de dinheiro vivo, para aprovar as contas de um prefeito |
No relatório sobre a mesma transação, um dos operadores da quadrilha descreve o resultado de uma reunião: ficou acertado que cinco conselheiros do TCE, inclusive o presidente da época, receberiam 130 000 reais |
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