Artigo por José Dirceu:
Em que pese os pontos ainda pendentes no Congresso dos EUA, a aprovação da reforma no sistema de saúde norte-americano joga luz sobre a necessidade de pensarmos o modelo que adotamos no Brasil.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a Constituição de 1988 consagra o SUS (Sistema Único de Saúde) como o mecanismo adequado de atendimento à concepção de uma política universal de Saúde.
Esse valor deve ser preservado, pois reforça o acesso à saúde como um direito humano fundamental. Por isso, as mudanças na saúde complementar constam do Plano Nacional de Direitos Humanos que o governo Lula apresentou ao país.
Mas um dos pontos fundamentais para uma reflexão é a atual situação dos planos de saúde. Em entrevista ao jornal “O Globo”, a médica Ligia Bahia traça um excelente diagnóstico sobre as relações dos planos de saúde privados com o SUS.
Dentre os problemas apontados, está o ressarcimento do SUS pelas operadoras dos planos —afinal, há excelentes hospitais e especialidades que integram a rede pública. Como bem nos explica a médica, atualmente, quando um segurado de um plano privado é atendido pelo SUS, em tese, deveria haver ressarcimento pelo uso do sistema público.
O que ocorre, no entanto, é que os gastos ressarcidos são apenas os de internação eletiva, os aprovados pelas seguradoras. Os demais, inclusive cirurgias e emergências, ficam sob responsabilidade do Estado.
Ou seja, o usuário do plano de saúde acaba contratando a iniciativa privada para usar o serviço público, situação que garante o lucro das operadoras e resulta em prejuízo ao atendimento da população mais carente.
O problema, segundo Ligia, desemboca no custo irreal dos planos no Brasil, que na média é muito baixo porque embute o uso do SUS e seu não ressarcimento. Isso transforma o Brasil no segundo maior mercado do mundo em planos de saúde privados e faz nosso sistema se afastar do objetivo da Constituição, que é a universalização da saúde.
A situação é resultado do “livre trânsito entre o público e o privado”. Afinal, ao longo do tempo, o ressarcimento dos atendimentos prestados pelos SUS aos clientes dos planos privados foi sendo limitado por medidas da ANS (Agência Nacional da Saúde), cuja atuação é preciso repensar também.
Para tentar sanar o problema, o Estado decidiu que iria cobrar pelo atendimento prestado pelo SUS. Mas a iniciativa privada consegue protelar o pagamento na Justiça, por meio de recursos que fazem as ações se arrastarem nos tribunais.
O governo do PSDB no Estado de São Paulo chegou a cogitar, inclusive com proposição de lei, a criação de uma reserva de 25% da capacidade de hospitais públicos administrados como organizações sociais para pacientes de planos de saúde ou particulares.
Um absurdo total, pois seria o mesmo que permitir que uma pessoa pagasse para ter reserva de leito em hospitais públicos.
É preciso lembrar também que uma parcela significativa das verbas para a saúde (cerca de R$ 15 bilhões) deixou de existir na virada de 2007 para 2008, com a atuação da oposição para barrar a CPMF. Esse dinheiro certamente está fazendo falta.
O governo federal tem investido no atendimento do cidadão do final da cadeia da Saúde, aquele que precisa do setor público para ser cuidado. Essa vertente —que prevê dobrar em 2010 as atuais 250 UPAs (Unidades de Pronto Atendimento)— visa deixar os hospitais para os casos mais graves, desafogando o sistema.
Também devemos pensar a relação dos planos privados com o SUS, de forma a exigir deles compromisso maior, no mínimo para o ressarcimento que hoje é fugidio. Além disso, seria interessante transformar o GEAP (Fundação de Seguridade Social) em um plano público alternativo para concorrer com os privados.
Fundamentalmente, é preciso investir mais no sistema universal e transformar em fato o cartão SUS, que possibilitará o acompanhamento do histórico de saúde do cidadão. Esse tema é crucial ao país e voltarei a ele em breve.
Por fim, quero externar meu sincero pesar pela morte da admirável médica Zilda Arns, que legou ao Brasil e ao mundo a Pastoral da Criança, importante instrumento de redução da mortalidade infantil e de universalização do acesso à saúde via sociedade civil. Sua pessoa e sua dedicação deixarão saudades.
José Dirceu, 63, é advogado e ex-ministro
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