terça-feira, 13 de setembro de 2011

Fiocruz cancela contrato SEM LICITAÇÃO, suspeito com empresa portuguesa no valor de R$ 365 milhões

Por Leila Suwwan (leila@sp.oglobo.com.br)
 
SÃO PAULO. A mesma empresa que fechou um contrato, já cancelado, de R$ 365 milhões com a Fiocruz no mês passado, a Alert Life Services, foi contratada pelo governo de Minas Gerais por R$ 48 milhões em 2007. O cancelamento do contrato da Fiocruz com a Alert foi publicado no Diário Oficial da União nesta terça-feira. A companhia portuguesa deveria fornecer 8 mil licenças de um software de triagem emergencial de pacientes, mas os pontos de atendimento do SUS não tinham computadores, equipamentos médicos, acesso a internet ou até energia, necessários para instalar e aplicar o programa. Das 4 mil unidades de saúde básica que seriam contempladas, menos de 400 (10%) tinham o sistema no ano passado. Um terceiro contrato com o Inca (Instituto Nacional do Câncer), de R$ 7,7 milhões foi firmado neste ano. Nos três, não houve licitação.
No primeiro caso, a Fiocruz decidiu cancelar o contrato na noite de sexta, devido à detecção de problemas processuais, como um projeto básico mal-elaborado, apontados por auditoria interna. Na realidade, a Fiocruz escolheu a Alert apenas com base em pesquisa interna, baseada em "informações públicas de mercado" e "conhecimentos técnicos". Sem ouvir propostas de outros concorrentes brasileiros ou internacionais, mas com aval do Ministério da Saúde, o instituto fechou o negócio milionário de transferência de tecnologia. A meta era a integração de todas as bases de dados do SUS e a "automatização" de todas as unidades básicas de saúde do país, a plataforma do futuro "Cartão SUS". Diversas autoridades federais e estaduais, inclusive de Minas Gerais, visitaram juntos a Alert em Portugal.
No caso de Minas, a Secretaria de Saúde (SES-MG) justificou o contrato sem licitação porque a Alert seria "a única empresa no Brasil que detinha, à época da contratação, o direito de utilização do Protocolo de Manchester" (sistema de classificação de risco do pacientes, que organiza o atendimento com base na gravidade dos doentes). Porém, o Brasil já tinha negociado o direito de uso gratuito desse protocolo, um dos vários existentes no mundo. A subsidiária da Alert no Brasil foi criada apenas um mês antes da assinatura do contrato como governo, segundo o registro na Receita Federal. E a subsidiária brasileira da Alert foi inaugurada um ano depois, em Belo Horizonte. O presidente é Luiz Brescia, que já presidiu a entidade de classe que atestou a "exclusividade" do produto da Alert, conforme exige a Lei de Licitações.
- Fizemos um acordo para trazer o Protocolo de Manchester para o Brasil, gratuitamente. Ele pode ser usado no papel ou informatizado. Quando é empresa com fins lucrativos, pagam royalties e nós só validamos. Mas se a empresa pública quiser desenvolver nem deve pagar. No Reino Unido é assim - disse Welfane Cordeiro Junior, presidente do Grupo Brasileiro de Classificação de Risco (GBCR), que já certificou outras empresas brasileiras para uso do protocolo de Manchester no Brasil. Segundo Welfane, que era coordenador de Urgências e Emergências na época do contrato, um integrante da SES-MG visitou a Alert e quis trazer o software rapidamente para o Brasil.
Além disso, a compra mineira foi feita sem qualquer planejamento para instalação e uso do progrma. Dois anos depois de fechar o contrato, menos de 135 postos de triagem estavam instalados, conforme documento de março de 2010 da SES-MG. Foram constatados furtos, desvios e falta de treinamento de pessoal para implantar o "Manchester", ainda no projeto piloto, em 400 unidades.
No ano passado, o governo estadual anunciou um "incentivo" de R$ 25 milhões para que 854 municípios mineiros instalassem mais de 3 mil pontos de triagem no sistema Manchester. Cada kit custa R$ 8,4 mil e inclui computador, monitor touchscreen, impressora, oxímetro de pulso e termômetro auricular. A meta até o fim do ano é implantar o projeto em mil unidades (25%) do total, conforme informou a SES-MG. Em esclarecimento de 12 páginas, a secretaria não detalhou exatamente quantas licenças estão em uso ou quantos postos estão instalados e funcionando plenamente. Nos locais onde não há internet até hoje, foi montando um sistema offline de atualização de dados, a cada 24 horas.
Já no Inca, o contrato com a Alert para compra do software "Paper Free Hospital" para cinco unidades hospitalares foi firmado em maio, com inexigibilidade de licitação. A justificativa foi a necessidade de "integração" com o software do setor administrativo de outra empresa que já estava instalado desde 2002. Esse sistema foi comprado pela Alert em 2010, que passou a fazer a manutenção e a deter todos os direitos acima de qualquer modificação ou atualização.
Antes da assinatura dos três contratos, houve viagem de autoridades para conhecer as instalações da Alert em Portugal, todas oficiais e custeadas com verbas públicas. Na mais recente, da Fiocruz, participaram o presidente da Fiocruz, Paulo Ernani Gadelha Vieira, o vice-presidente da Fiocruz, Pedro Barbosa, o secretário de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, Odorico Monteiro, um representante da diretoria de Informática do Datasus, representantes dos conselhos estadual e municipal de secretários de saúde e técnicos do governo. De acordo com a Fiocruz, também esteve na viagem o atual secretário de saúde de Minas Gerais, Antonio Jorge Marques. Nenhuma outra empresa foi visitada no Brasil ou no exterior.
A Fiocruz decidiu, na noite de sexta-feira, cancelar o contrato com a Alert e reiniciar o procedimento de compra de tecnologia com base nas recomendações processuais da auditoria interna. Apesar disso, o instituto negou qualquer tipo de direcionamento e informou que o estudo interno prévio levou em conta uma pesquisa de mercado com base em diversos pré-requisitos técnicos. A Fiocruz sustenta que as medidas são demonstrações de "zelo com a coisa pública" e uma oportunidade para aperfeiçoar os mecanismos de contratação.
Em nota, a Fiocruz reconheceu a necessidade de "prospecção" com outras empresas para a transferência de tecnologia. "A decisão do cancelamento foi tomada após apreciação dos termos do contrato com a Alert por técnicos da auditoria interna da Fiocruz. Nesta avaliação foi identificada a necessidade de estabelecimento de projeto básico que melhor caracterize a transferência de tecnologia e defina, num grau maior de detalhamento, as regras para execução de cada etapa do contrato. Novo processo para a transferência de tecnologia será aberto nos próximos dias, incluindo a prospecção de empresas interessadas na parceria com a Fiocruz", diz o texto.
Sobre o preço do contrato cancelado, a Fiocruz argumentou que o custo dessa tecnologia pode ser estimado no impacto que teria no SUS, que no mercado poderia custar mais de R$ 1 bilhão.
- Estabelecemos critérios de mercado sobre o impacto da compra. A informatização de uma unidade básica de saúde custa de R$ 10 mil a R$ 15 mil. Considere 40 mil unidades. Um hospital pode ficar por até R$ 5 milhões, sem que tenhamos propriedade do produto - disse Pedro Barbosa, vice-presidente da Fiocruz.
A Secretaria de Saúde de Minas Gerais reconheceu que houve "problemas" na implantação do sistema, devido ao porte e a complexidade mas não fez comentários sobre desuso de mais da metade das licenças de software pagas nos últimos três anos. Sobre a falta de licitação, lembrou que a Alert era "à época, a única detentora dos direitos de comercialização do software" no Brasil. A SES-MG defendeu o uso do Protocolo de Manchester, devido ao reconhecimento científico internacional e seu uso em diversos países. Porém, não citou a possibilidade de informatização própria, gratuita, do procedimento, pela Prodemge (Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais).
O Inca informou que todos os contratos com a Alert foram aprovados pela Advocacia Geral da União (AGU) e que não seria possível considerar outras opções de software ou de integração porque a Alert detinha os "direitos autorais de uso do sistema" administrativo já instalado.
Procurada, a Alert não quis se pronunciar sobre o contrato com a Fiocruz. Sobre Minas Gerais, o presidente da empresa no Brasil, Luiz Brescia, afirmou que o contrato de licença corporativa não previa a implantação física e que os equipamentos necessários são recomendados, mas não "exigidos" pela Alert. Sobre o Inca, Brescia sustentou que o software já existente "não estava evoluindo com a necessidade do mercado"

Nenhum comentário:

Postar um comentário