A maioria dos casos que chegam aos plantões dos tribunais brasileiros é de consumidores lutando contra planos de saúde em situações de emergência.
A maioria dos casos que chegam aos plantões dos tribunais brasileiros é de consumidores lutando contra planos de saúde em situações de emergência. Nossas equipes acompanharam três desses plantões, no Rio, em São Paulo e no Recife. Registramos a aflição de quem precisa de uma cirurgia ou de um procedimento, que pode ser a diferença entre a vida e a morte.
Emergência não tem hora nem lugar para acontecer. Se o parto não for feito logo, o bebê de Marcelo e Liana corre muito risco. O sogro de Fábio está muito mal. Michelle precisar ser operada logo.
Faz mais de uma semana que dona Josefa sofre, esperando a autorização para ser operada.
Todos eles pagam plano de saúde. Segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), que regulamenta o funcionamento dos planos, essas pessoas deveriam ter sido atendidas.
“A lei garante o atendimento de urgência e emergência após 24 horas da contratação do plano”, aponta Carla Soares, diretora de Produtos da ANS.
Como não conseguiram, elas foram obrigadas a recorrer à Justiça. O Fórum do Rio nunca fecha as portas. Funciona 24 horas, inclusive nos fins de semana e feriados. Juízes e desembargadores que trabalham no plantão judiciário dizem que 80% das pessoas que vão até lá tentam resolver problemas de saúde urgentes. Estão incluídos aqueles casos relativos aos planos de saúde. É um desses plantões que nós vamos acompanhar.
Parentes de Liana Crespo chegam preocupados. Ela precisa de uma cesariana urgentemente. O útero já se dilatou, e o bebê está com o cordão umbilical enrolado no pescoço. O caso é grave, mas o plano dela tem carência para cesariana. Por isso, não autoriza o procedimento, mesmo faltando só dez dias para o fim da carência.
“Não cobre a carência. Só daqui a dez dias que a carência será coberta. O bebê não espera. A minha mulher está na porta do hospital, sentada lá, esperando”, desabafa Marcelo Crespo, marido de Liana.
A família foi orientada pela defensoria pública. O defensor já checou os documentos necessários para dar entrada na Justiça contra o plano. Agora, o caso segue para o juiz de plantão. A situação dela se complica.
“Aumentou o período de contração dela. Era um intervalo maior, agora está em um intervalo menor. Isso está colocando mais em risco a vida da criança”, alerta Diego Marques, cunhado de Liana.
Será que vai dar certo? É a mesma pergunta feita pelos parentes de dona Josefa.
“O plano de saúde não autorizou a cirurgia da minha mãe. Ela não está no prazo de carência. Já cumpriu 20 meses, quase dois anos de plano de saúde que ela paga. E eles não autorizaram a cirurgia. Eles alegam que o custo do material da cirurgia é muito caro para o plano de saúde”, diz Elisabeth Souza, filha de dona Josefa.
O sofrimento de dona Josefa começou quando ela foi trocar uma lâmpada na cozinha de casa.
“Apanhei a escada, peguei uma lâmpada nova e subi a escada, e levei a outra, nova, botei em cima do armário para pegar a outra para torcer. Quando eu peguei, ela começou a sair fogo. Deu curto-circuito. Eu esqueci que estava em cima da escada, me assustei e caí de costas”, lembra dona Josefa. “Eu liguei para o genro da minha irmã. O genro da minha irmã foi lá me apanhar.”
“Ela espera há oito dias a cirurgia”, acrescenta a filha.
“Isso é muito triste, é muito triste, é muito triste. Não dá para aguentar. O sacrifício que eu faço para pagar esse plano de saúde”, desabafa, emocionada, a diarista Josefa da Silva.
“Nós temos visto um crescimento muito grande na área a procura de urgência dos planos de saúde”, diz Alexandre Coelho, juiz do Plantão Judiciário.
“Ao todo, 60% da nossa demanda é plano de saúde”, comenta defensora pública de Pernambuco, Nathália Jambo.
“Existem cerca de 240 mil ações correndo no país. Essas 240 mil ações dizem respeito a esse tipo de falta de cobertura ou alguma queixa do paciente”, acrescenta Arlindo de Almeida, presidente da Associação de Medicina de Grupo.
O Fantástico vai acompanhar mais um plantão judiciário. Agora, na capital paulista. Lá também encontramos pessoas aflitas, em busca de ajuda. A mulher de Marcelo Mendes, Michelle, teve que ser internada às pressas por causa de dores insuportáveis na coluna. Os médicos diagnosticaram duas hérnias de disco.
“A medicação que ela tem tomado é uma medicação que só é receitada para quem tem metástase de câncer, que são pessoas que têm dores insuportáveis”, diz Marcelo.
“Faz 11 anos que eu tenho plano, o mesmo plano. Eu pago mais para isso e fiquei jogada desde terça-feira em uma cama lá embaixo. E com dor. Com dor sem parar, sem parar. O médico ainda falou para mim que quanto mais demorasse a cirurgia, os movimentos para voltar demoram mais ainda”, afirma a bancária Michelle Baroni.
Marcelo pôde pagar um advogado, que está à frente do caso no tribunal.
“O convênio exige um laudo médico para ver se a cirurgia é um caso de urgência ou não. O médico deu esse laudo explicando que é caso de urgência. Mesmo assim, o médico do plano de saúde está contestando esse laudo”, explica o advogado Atílio Franchini Neto.
“Basta o médico assistente do paciente, do consumidor, atestar que ele é um estado de urgência, emergência. A operadora não pode exigir autorização prévia, estabelecer mecanismos que impeçam o atendimento de urgência e emergência, e deve prestar o atendimento”, reforça Carla Soares, diretora de Produtor da ANS.
Estamos agora no Tribunal de Justiça do Recife. Fábio Schever precisa internar o sogro, seu Geovani, em uma UTI. O plano alega que o período de carência ainda não foi cumprido. Por isso, não autoriza a internação.
“Ele estava vomitando sangue, ele deve ter rompido uma veia, precisava fazer uma endoscopia de urgência com contraste, que só pode ser feita depois da internação, mas teria que ser acompanhado direito na UTI. A gente ainda não sabe exatamente o que ele tem”, conta o genro.
No hospital, seu Geovani relembra o susto: “Quando chegaram aqui, não quis aceitar, e aí entrou em pânico”, diz.
“Esse, inclusive, é um dos planos que acabou de ser proibido pela Justiça de produzir novos planos. Já estão com esse problema, e ainda vão tratar dessa forma quem já é cliente? Acaba falindo”, acrescenta Fábio.
Em julho deste ano, a ANS suspendeu a comercialização de 268 planos de saúde de 37 operadoras. Eles descumpriram uma norma que entrou em vigor em dezembro. A agência estabeleceu prazos máximos de atendimento para casos não-emergenciais. Consultas, exames e cirurgias devem ser realizados entre três a 21 dias depois da solicitação.
O metalúrgico Francisco Bernardino diz que o plano dele descumpriu a norma: “Levei mais ou menos dois meses.”
Ele chegou a procurar o plantão do tribunal do Recife. Como o caso não é de emergência, Francisco foi orientado a procurar a defensoria pública. Ele precisa de um exame caro, que o plano não quer pagar. Mas o exame faz parte da lista de procedimentos autorizados pela Agência Nacional de Saúde.
A médica dele suspeita de protuberâncias no intestino delgado, chamadas de pólipos. Eles podem evoluir para câncer. Por isso, ele precisa engolir uma câmera. Ela vai fotografar o órgão todo e transmitir as imagens para um gravador.
“Esse é o exame mais indicado para diagnóstico de pólipos do intestino delgado. Os pólipos do intestino grosso e do intestino delgado têm um potencial maligno”, explica a gastroendoscopista Ana Botler.
No plantão judiciário do Rio, falta pouco para a família de Liana saber se a luta contra o plano vai acabar bem. Foi concedida a tutela antecipada.
A família agora tem pressa. Terão que percorrer cerca de 40 quilômetros até chegar ao município de Nilópolis. Ela já entrou no hospital.
Meia hora depois, a família chega ao hospital. Liana está bem. “Agora ela está calma”, conta o marido.
No início da reportagem, você viu Fábio lutando para o sogro ser internado no Recife. Agora ele está mais calmo. A boa notícia chegou:
“O juiz autorizou. A gente vai para aí junto com o oficial de Justiça, que vai mostrar que ele vai ter que cumprir isso. O plano vai ter que arcar com o tratamento”, diz ele, ao telefone.
Em São Paulo, o marido de Michelle também consegue uma decisão favorável no tribunal e vai com o advogado para o hospital. Depois de cinco dias de espera, ela vai ser operada.
“Quando o juiz dá uma liminar, você é obrigado a cumprir, certo? Os planos de saúde cumprem imediatamente”, explica Arlindo de Almeida, presidente da Associação de Medicina de Grupo.
Não foi o que aconteceu com dona Josefa. Como você viu no início da reportagem, ela lutava para conseguir uma cirurgia na coluna. A liminar do juiz foi favorável, mas, nem assim, a operação pôde ser feita. Aí, a família teve que procurar o fórum novamente.
A cirurgia foi autorizada, mas não liberaram o material. “Então, não tem como ser feita a cirurgia”, diz Elisabeth Souza, filha de dona Josefa.
O médico indicou três fornecedores para esse material, e o plano se recusou, não quer aceitar nenhum desses fornecedores.
“Meu médico está lutando com eles, entrou em contato com eles”, afirma dona Josefa. “Ele disse: ou eu faço com material bom ou então eu não opero a senhora.”
“A indicação da órtese e prótese e o material é dada pelo médico, e caso a operadora entenda que aquela que ele não é o melhor material, não é a melhor órtese e prótese, existe a possibilidade da formação de uma junta médica para dirimir este conflito. Lembrando que este processo de autorização prévia não pode ser usado nos casos de urgência e emergência”, ressalta Carla Soares, diretora de Produtos da ANS.
Mas a Associação de Medicina de Grupo admite que isso acontece.
“Normalmente não deve acontecer. É contra a lei. Mas isso pode acontecer”, admite.
Segundo a associação, os planos seguem a lei do setor, mas os tribunais muitas vezes usam o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso para dar as liminares. Pode haver conflito de interpretação. Planos antigos contratados antes de a lei entrar em vigor não preveem todas as coberturas que constam no rol da ANS.
Já os juízes dizem que tomam a primeira decisão sem ouvir os planos.
“Com base em uma legislação que obriga a ele, julgador, a não se aprofundar no assunto, até porque ele só tem informação de um dos lados, uma das partes”, diz Marcelo Russell, juiz do Plantão Judiciário de Pernambuco.
Aí, as operadoras dos planos podem recorrer.
“O plano de saúde, mesmo quando ele ganha, às vezes o custo é tão alto daquele procedimento, que a família não tem condições de arcar com isso. Então o prejuízo fica com o plano de saúde”, acrescenta Arlindo de Almeida.
Depois de 21 dias de agonia, dona Josefa foi operada. “Isso aí foi a pior coisa que eu passei em toda a minha vida, não desejo para ninguém. E você pagar um plano de saúde para você e na hora que precisar você ser atendida”, conta ela.
Em São Paulo, a bancária Michelle Baroni passa bem depois da cirurgia. “Estou feliz de sair, sem dor. Triste por ter passado tudo que eu passei. Eu me senti ninguém. Sabe quando você se sente que não é nada? E dá mais uma indignação porque tanto tempo pagando convênio”, diz Michelle.
No Recife, o exame de Francisco não encontrou sinais de câncer no intestino delgado.
Seu Gioavani vai precisar de um longo tratamento no fígado.
No Rio, a vendedora Liana Crespo está em casa aliviada, com Mateus no colo. O parto correu bem.
“Quando recebi a notícia que a liminar tinha sido entregue, minha sensação foi de alívio. Dei aquela respirada e falei: vamos lá, graças a Deus”, diz ela. “Eu não esperava passar por essa humilhação toda para poder ter o meu bebê no colo. Agora estou muito feliz, porque ele é saudável, é bonzinho. Eu não tenho como explicar o que eu estou sentindo nesse momento.”
Se você passa por situações parecidas como essas que mostramos, a Agência Nacional de Saúde Suplementar diz que o primeiro passo é levar o caso à própria ANS. A agência dispõe de um telefone para ligação gratuita: 0800 701 9656.
A multa por cada negativa de atendimento de emergência é de R$ 100 mil.