Uma taxa sinistra
A legalidade de uma cobrança extra de R$ 100 em apólices de seguro é contestada por parecer da Advocacia-Geral da União
HUDSON CORRÊA E ISABEL CLEMENTE
Buscar proteção contra perdas e acidentes é, cada vez mais, uma despesa inevitável (e necessária) no orçamento das famílias e das empresas brasileiras. Por isso, o mercado das empresas seguradoras exibe taxas de crescimento chinês, como poucos ramos da economia. Em 2011, a expansão do mercado segurador foi seis vezes o crescimento do PIB brasileiro. Neste ano, deverá movimentar R$ 250 bilhões. Esse é também um ramo peculiar, com definições que escapam à compreensão das pessoas comuns, como prêmios, carregamentos e sinistros.Talvez, por esse motivo, o brasileiro tenha se acostumado a pagar apólices de seguro sem verificar todos os penduricalhos existentes num contrato ou questionar a legalidade da cobrança de certas taxas.
Um desses penduricalhos é o custo de emissão de apólice, praxe no seguro de veículos. Formalmente, a taxa existe desde 1998, mas era facultativa e limitada a R$ 60. Na prática, ela nem sempre era exigida do consumidor. Em fevereiro de 2010, a Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda encarregada de fiscalizar e regular o mercado segurador, mudou esse panorama ao elevar o teto para R$ 100. O valor, então, passou a ser cobrado de forma irrestrita por todas as seguradoras, à exceção de alguns segmentos específicos, como o habitacional. Especialistas do ramo estimam que, em dois anos, a arrecadação das empresas com a taxa tenha chegado a R$ 4 bilhões.
ÉPOCA obteve documentos que questionam a legalidade da cobrança e o prazo acelerado (três dias) em que o reajuste da taxa foi aprovado pela Susep. Segundo Guilherme Baldan Cabral dos Santos, procurador da Advocacia-Geral da União (AGU) junto à Susep, a cobrança da taxa é ilegal porque o custo da emissão da apólice já está incluído no prêmio, como é chamado o valor cobrado das seguradoras de seus clientes para assumir um risco. Baldan afirma que a medida lesa o consumidor e foi tomada às pressas sem a devida análise de seus colegas da AGU. O parecer de Baldan está dentro de um processo movido por ele mesmo na Susep para derrubar a cobrança da taxa. Baldan diz que resolveu investigar o caso quando sua família teve de pagar, além do prêmio, mais R$ 100 pela emissão da apólice de seguro de um carro. “Os consumidores, verdadeiros leigos, pagam de boa-fé, sem ter a noção do flagrante ilícito perpetrado pela companhia seguradora, com o nítido aval do órgão oficial federal de fiscalização do mercado segurador”, diz Baldan, no parecer.
Quando o aumento foi autorizado, o então superintendente da Susep era Armando Vergílio dos Santos Júnior, hoje deputado federal pelo PSD de Goiás e corretor de seguros de carreira. Armando Vergílio deixou a Susep no fim de março de 2010 para se candidatar a deputado nas eleições daquele ano e arrecadou R$ 3,9 milhões para sua campanha. Boa parte do dinheiro veio do próprio bolso (R$ 1 milhão), e outra das seguradoras (R$ 600 mil), de acordo com informações prestadas à Justiça Eleitoral. Armando Vergílio é presidente da Federação Nacional dos Corretores de Seguros (Fenacor), entidade que presidira antes de assumir a Susep, a convite do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2007. Quando autorizou o aumento, Armando Vergílio fez um favor à própria categoria. De cada R$ 100 arrecadados com o custo de emissão de apólices, cerca de R$ 20 são repassados aos corretores de seguros. “Ao nomear um corretor, presidente da categoria, para o cargo de superintendente, o governo Lula colocou uma raposa para tomar conta do galinheiro”, diz o advogado Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. Tzirulnik também considera a taxa de R$ 100 ilegal. Ele afirma que, até a decisão assinada por Armando Vergílio, a cobrança do encargo nem sempre ocorria, mas agora se tornou uma grande fonte de renda para as seguradoras.
EM CAUSA PRÓPRIA
O deputado Armando Vergílio, presidente da Federação Nacional dos Corretores de Seguros, aprovou o reajuste da taxa quando comandou a Susep (Foto: Leo Pinheiro/Valor RJ)
A Fenseg, uma das federações representativas das seguradoras, diz, em nota, que “não é correto afirmar que a cobrança esteja sendo feita sempre pelo limite máximo” e que o custo de emissão de apólice não visa apenas a bancar a papelada do processo, mas “custos de vistoria, boletos bancários, cartões para assistência 24 horas”. Ao justificar a necessidade de reajustar o custo de emissão de apólice, as seguradoras elencam também problemas como a alta do custo postal, dos papéis e das distâncias percorridas para fazer vistorias por todo o país. A explicação ignora que a taxa de corretagem sempre esteve embutida no valor total pago pelo cliente e que, hoje, o mais comum é o cliente receber os boletos bancários do seguro por e-mail, sem nenhum custo de emissão de papel para as empresas.
CONTRADIÇÃO O documento da Fenseg mostra que o repasse de 20% da taxa para os corretores foi discutido pela Susep, apesar das negativas do deputado Armando Vergílio, ex-superintendente do órgão (Foto: Reprodução)
O deputado Armando Vergílio disse a ÉPOCA que a taxa não é ilegal e foi sempre cobrada pelas seguradoras. Sobre as afirmações do procurador Baldan, ele disse que se trata de perseguição política do PTB, seu partido até 2009. Segundo Armando Vergílio, Baldan foi indicado pelos petebistas para a superintendência da Susep em 2011, mas acabou preterido. “Por que ele só denunciou a taxa agora, se ela sempre existiu?”, diz. Armando Vergílio afirmou também que o repasse do percentual de 20% para corretores, descontado da taxa de R$ 100, não foi tratado pela Susep. Um documento obtido por ÉPOCA derruba essa versão. O pedido de reajuste da taxa para R$ 100 partiu da Fenseg, em correspondência enviada a Armando Vergílio no dia 3 de fevereiro de 2010. No ofício, a Fenseg declara que a elevação do valor permitiria o repasse do percentual aos corretores e beneficiaria diretamente a categoria representada por Armando Vergílio.
Segundo a Susep, o processo em que Baldan aponta a ilegalidade da taxa ainda está sob análise. É uma discussão que vale bilhões de reais
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