quarta-feira, 3 de março de 2010

Famintos, sobreviventes do sul do Chile cometem saques

Presidenta Bachelet mobiliza tropas e estende o toque de recolher


Rodrigo Craveiro
Publicação: 03/03/2010 07:00 Atualização: 03/03/2010 01:46

 

A chilena Nadia Sandrella Valenzuela, 22 anos, vive duas tragédias: a ataxia de Friedrich tirou-lhe as forças para se manter-se de pé e o terremoto de sábado roubou-lhe a tranquilidade. “Tenho medo que o mar volte a ‘sair’ e das réplicas, que acontecem a cada meia hora”, desabafa a estudante de Penco. Na cidade situada a apenas 11km de Concepción, algas marinhas foram lançadas sobre os postes — resquícios do tsunami que varreu parte da localidade — e as ruas transformaram-se em terra de ninguém. “Há muito desespero por aqui. As pessoas não têm o que fazer e saqueiam supermercados para dar comida aos filhos”, afirmou ao Correio, por telefone. “Estão entrando nas casas para roubar e alguns se aproveitam da situação”, acrescentou, revelando que muitos cidadãos se armaram.

Quem pode sair perambula por Penco em uma batalha pela sobrevivência. “As pessoas querem água e comida, que estão em falta por aqui”, relatou Nadia. Ela e os tios recebem a ajuda de familiares que vivem fora de Penco. Não é o bastante para lhes trazer conforto. “Meus tios precisavam de um carro para me levar a um local mais seguro”, lamenta.

Na localidade de San Pedro de La Paz, uma localidade próxima a Concepción, a população usa paus e pedras para erguer barricadas e se proteger de ladrões. A violência e a desordem fizeram com que a presidenta do Chile, Michelle Bachelet, estendesse o toque de recolher para 18 horas e mobilizasse 14 mil militares nas áreas mais afetadas pelo terremoto de sábado passado. Segundo o general Guillermo Ramírez, o estado de sítio passará a valer das 18h às 12h do dia seguinte. Tanques de guerra e outros veículos limitares guardavam ontem locais estratégicos, como estabelecimentos comerciais.

Bachelet garantiu que a situação em Concepción está sob controle e anunciou que 11.850 dos 14 mil soldados patrulhavam Maule e Bío Bío. De acordo com o jornal La Tercera, a mandatária não economizou críticas às cenas de saques e incêndios ocorridos na segunda-feira e prometeu todo o rigor da lei contra atos de vandalismo. “Não vamos tolerar esse tipo de ação (saques)”, alertou. A previsão era de que ontem os carabineros (polícia chilena) aumentassem seu efetivo e instalassem hospitais de campanha.

Às 17h35 de ontem, a terra voltava a tremer com força em Talca, a 140km dali. “Amigo, preciso abandonar a comunicação, está tremendo muito forte”, disse à reportagem, pela internet, Camilo Piño Leal, 21 anos, estudante de prevenção de riscos da Universidad de Los Lagos de Chile. O US Geological Service (USGS), instituto de sismologia dos Estados Unidos, detectou a réplica de magnitude 4.8 na Escala Richter na região de Bío Bío. O epicentro se situava a 35km de profundidade e a 170km de onde Camilo estaca. O rapaz confirmou a volatilidade da segurança na região. A madrugada de ontem foi tensa ao extremo. “Tentaram roubar muitas casas e a polícia deteve vários suspeitos em minha cidade”, relatou. “Os vizinhos têm se organizado. Avisamos quando há algo estranho em uma das casas e tocamos um apito.”

Camilo reclama que os supermercados de Talca estão praticamente vazios. “Temos pouca água, quase nada, e a comida é bastante escassa. Contamos apenas com alimentos enlatados, já que é impossível usar refrigeradores”, afirmou. Sem água desde sábado, ele e outros moradores não têm escolha a não ser romper os encanamentos — o caminhão-pipa da prefeitura só passou pela Rua 21 Sul, bairro Colin 3, uma única vez desde a tragédia. Os banhos são racionados. “Lavamos apenas algumas partes, pois não podemos desperdiçar água”, descreveu. A eletricidade, por sua vez, foi restabelecida apenas na noite de segunda-feira.

Mais vítimas
Penco, Concepción, San Pedro de La Paz e Talca formam uma linha de destruição no sul do Chile — juntas, as regiões de Bío Bío e do Maule registraram 678 mortes. Na tarde de ontem, o número de vítimas do terremoto de magnitude 8,8 na escala Richter subiu de 763 para 795, com a confirmação de mais 32 corpos na área de Tauca. Ante a dimensão da tragédia, o presidente eleito Sebastián Piñera admitiu ontem ampliar a área de catástrofe (1). “Estamos avaliando em nosso futuro governo estender esse estado de catástrofe a outras regiões, de forma que as soluções em matéria de ordem pública, água potável e eletricidade sejam mais rápidas e efetivas”, declarou. O anúncio deu-se após uma reunião com a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, que visitou ontem Santiago e também foi recebida por Bachelet.

A chefe da diplomacia dos Estados Unidos chegou ao país com 25 telefones via satélite — uma contribuição inicial — e oferta de mais ajuda. “Estamos prontos para ajudar da forma que o governo do Chile pedir”, prometeu Hillary. “Os Estados Unidos querem estar ali para ajudar quando outros tiverem ido”, acrescentou. Ela também revelou que os EUA estão enviando oito equipamentos de purificação de água e preparando um hospital improvisado e dotado de equipamento cirúrgico portátil, máquinas de diálise, geradores e pontes móveis.

O cenário era um pouco mais tranquilo em Santiago. A capital dava mostras de buscar o retorno à normalidade. “Não há maiores problemas por aqui. A situação se estabilizou. Em 96% das casas há energia elétrica, o comércio voltou a funcionar”, disse à reportagem, pela internet, o relações públicas Carlos Felipe Soto Viveros, 26 anos. Por sua vez, o desenhista industrial Ricardo Andres Rodríguez Fuentes, 22, disse que houve tentativas de saque na comunidade de Quilicura. Ele acusa a reação do Estado à catástrofe de “lenta e deficiente”. “Há lugares que ainda não receberam ajuda, o que é intolerável”, desabafa.

1 - Poderes redirecionados
O artigo 41 da Constituição do Chile revela que o estado de catástrofe só pode ser decretado pelo presidente da República, no caso de calamidade. O chefe de Estado tem a obrigação de determinar a área afetada e informar ao Congresso Nacional sobre as medidas adotadas.

Por sua vez, o Parlamento pode deixar a medida sem efeito depois de 80 dias, caso as razões da decretação tenham sido sanadas. Ao decretar o estado de catástrofe, as regiões assoladas pelo desastre ficam sob jurisdição do chefe da Defesa Nacional, designado pelo presidente.

Ouça entrevista com Nadia Sandrella Valenzuela, 22 anos, morador de Penco (sul do Chile), cidade atingida pelo tsunami

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